sábado, 3 de março de 2012

Impunidade, igualdade e fraternidade.




Passados alguns elásticos dias pré e pós-carnavalescos do fim da insurreição da polícia militar da Bahia, dias propícios à orgia e ao esquecimento, sem que a notícia de punição alguma tenha sido anunciada e aplicada aos marginais fardados, que subverteram a ordem pública, sequestraram ônibus, coagiram cidadãos com arma em punho e interditaram avenidas, atirando para o céu, num atentado contra o senhor direito de ir e vir das pessoas, e mais alguns outros crimes de morte, saque e assalto divulgados pela imprensa, podemos ao menos tirar uma importante comprovação desse triste e grave episódio, que é a nua e crua constatação de que ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Somos todos iguais.

Desde criança tenho uma acentuada e indisfarçável predileção pelos desvalidos.  Para a preocupação de meus pais, ofereci, entre outros motivos, o fato de ter entre os mendigos e os favelados os meus melhores e mais queridos amigos, com quem eu partilhava, sem dolo e sem culpa, o excesso dos bens materiais e da pequena renda que me cabiam.

Mais velho, já cursando a faculdade, essa predileção se acentuou, quando a legião de miseráveis e desvalidos recebeu um reforço numérico incalculável, patrocinado pelos donos da ditadura militar, ao ponto de um famoso astro internacional da música ficar tão impressionado com a minha intimidade com os mendigos e moradores de rua - nós nos abraçávamos e nos chamávamos pelo nome - que o seu disco, nascido dos 20 dias de nossa frutífera convivência, chama-se O banquete dos mendigos, cuja música mais conhecida desse disco é Sympathy for the devil.

Com a prática budista não religiosa que me leva pelo caminho no universo material, aprendi a fechar os olhos quando abraço alguém que eu amo. Com isso, posso sentir melhor o abraço e tão profundamente, ao ponto de me ver transformar no abraço que eu dou.

Um dia desses, abraçava Cristina, uma querida, linda e elegante senhora moradora de rua, que nesse dia estava um pouco mais suja e com o seu perfume da sarjeta mais acentuado, quando tive um em impulso de abrir os olhos e ver o quanto é ridícula a expressão do horror e nojo das pessoas normais em nossa volta, uma vez que depois daquele lindo abraço que nós fomos, eu voltei a ser eu e ela voltou a ser ela.

Agora vejo como é também ridícula a expressão da nossa repulsa diante do episódio dos crimes e da impunidade de um bando de marginais fardados, porque nós todos vimos nesse episódio e com bastante clareza que:

1.     alguns policiais a quem empregamos, remuneramos mal e os armamos com a missão de zelar pela nossa segurança, não são nem um pouco melhores nem piores do que um bando de traficantes armados, que aterrorizam as favelas do país;
2.     os governantes e os parlamentares, que elegemos e os remuneramos regiamente para nos garantir a ordem e o progresso, palavras inutilmente escritas na nossa bandeira, mas que se atolam na lama fétida da corrupção e da impunidade, não são nem um pouco melhores nem piores do que um bando de porcos chafurdando a lama asquerosa do seu alimento, para encher o próprio bucho;
3.  os possuidores do Brasil, esses eternos capachos do colonialismo, deplorável gente predadora do meio ambiente e dos recursos naturais, que nada inventa e nada cria, além da sombria arquitetura e obscura construção do nosso triste quadro social, não são melhores nem piores do que a legião dos explorados possuídos, que dispondo apenas de recursos para sobreviver, criam uma das mais belas e vigorosas arte popular do mundo;
4.     e que nós mesmos, com a nossa ancestral indiferença à vida, não somos nem um pouco melhores nem piores do que um bando de carneirinhos conformados, caminhando passivamente para o abatedouro.

Assim, em uma merecida homenagem à coerência, vamos combinar que onde se lê ordem e progresso sobre o lábaro estrelado ostentado pela nossa bandeira, veja-se escrito impunidade, igualdade e fraternidade, porque ninguém mais duvida que todos nós somos irmãos, iguais como inimigos e unidos como os animais.


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