domingo, 29 de janeiro de 2012

A face mais visível de Salvador


Ando por calçadas arrebentadas,
como as vias bombardeadas da Palestina.
Piso em fezes, lama e urina,
como se estivesse dentro de uma latrina.

Nesse peso de andares e odores infernais,
ouço o ruído estridente de músicas horríveis e banais,
como se eu cumprisse a pena máxima  de todos o tribunais.

Seguindo pelas ruas da cidade,
vejo gente imunda, maltrapilha, maltratada,
como se caminhasse por uma África escravizada.

E caminho pelas ruas de Salvador,
sem poder apreciar a sua beleza,
como se a fome, a miséria e o abandono
embotassem meus olhos de tristeza. 

Tudo que reluz é... petróleo!


sábado, 28 de janeiro de 2012 | 08:30

Pepe Escobar (Asia Times Online)

No discurso “O Estado da União”, esta semana, o presidente dos EUA Barack Obama disse: “Que ninguém duvide: os EUA estamos determinados a evitar que o Irã chegue à bomba atômica, e não excluirei de sobre a mesa nenhuma opção para atingir aquele objetivo.”
No mundo real, a frase significa que Washington quer ir à guerra – a guerra econômica já está em curso – contra um país que assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear e não está construindo armas atômicas, como já declararam a Agência Internacional de Energia Atômica e a mais recente US National Intelligence Estimate.
Obama também disse que “o regime de Teerã está mais isolado do que nunca; seus líderes sofrem sob o peso de sanções paralisantes, e, enquanto fugirem às suas responsabilidades, a pressão não diminuirá.”
“Isolado?” Não, não. O Irã não está isolado. Nem, tampouco, é a liderança iraniana que sofre sob o peso de sanções paralisantes: quem sofre é a absoluta maioria de 78 milhões de iranianos pobres.
Em declaração antes do discurso, Obama “aplaudiu” a decisão da União Europeia de impor embargo contra o petróleo do Irã, e acrescentou que “Aquelas sanções demonstram, mais uma vez, a unidade da comunidade internacional”.
OK. Mas a tal “unidade da comunidade internacional” é composta de EUA, países da OTAN, Israel e o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo); o resto do mundo é miragem.
Venha para o programa petróleo-por-ouro. Dois países Brics, Índia e China, juntos, compram pelo menos 40% do petróleo que o Irã exporta, 1 milhão de barris/dia. 12% do petróleo de que a Índia necessita. E a China comprou, ano passado, 30% mais petróleo do Irã que em 2010, média de 557 mil barris/dia.
A “comunidade internacional” de verdade já está tomando conhecimento de que a Índia começará a pagar em ouro, pelo petróleo iraniano – não com rúpias, através do banco estatal UCO indiano e do banco estatal Halk Bankasi, turco.
Pequim – que já negocia com o Irã em yuans – pode também mudar-se para o ouro. Desnecessário lembrar que ambas, Delhi e Pequim, são grandes produtoras de ouro, com muito estoque nos cofres. Assim, o Ano do Dragão começará com muito barulho: pode bem ser o padrão-ouro do Ano do Dragão.
Todos recordam o fracassado programa da ONU petróleo-por-comida, que matou de fome os iraquianos, nos anos antes da invasão/ocupação dos EUA, em 2003. Iraquianos médios pagaram preço terrível pelas sanções de ONU/EUA, e o programa petróleo-por-comida só beneficiou o sistema de Saddam Hussein.
Agora, o negócio é muito mais sério; é o programa petróleo-por-ouro, iniciativa de Brics + Irã que beneficiará a liderança da República Islâmica e talvez alivie os efeitos das sanções sobre a população iraniana. Consequências globais: a cotação do ouro sobe; o petrodólar cai.
Outro país Brics, a Rússia, já negocia com o Irã em rials e rublos. E a Turquia, aspirante a membro do grupo Brics – e que também é integrante da OTAN – não acompanhará as sanções de EUA/União Europeia, se não forem impostas pelo Conselho de Segurança da ONU (não-não, porque Rússia e China, membros permanentes, vetarão).
Em dois meses, o primeiro-ministro Vladimir Putin – que enfurece/apavora Washington e Bruxelas como um neo Vlad o Impalador – estará de volta à presidência da Rússia. É quando os poodles atlanticistas saberão o que é jogo à vera.
Enquanto isso, Teerã jamais se curvará às sanções ocidentais – muito menos com vários mecanismos laterais/subterrâneos já implantados para vender seu petróleo e que envolvem três países Brics mais dois aliados dos EUA, Japão e Coreia do Sul, os quais, provavelmente, conseguirão que o governo Obama os isente de cumprir as sanções.
Dado que isso tudo jamais teve algo a ver com uma inexistente arma nuclear, a liderança em Teerã só terá de seguir um parâmetro supremo de estratégia: não cair em provocações ou em arapucas de operações clandestinas sob falsas bandeiras, que serviriam como casus belli para um ataque de guerra do eixo EUA/Grã-Bretanha/Israel.
E tudo isso, enquanto tendências no horizonte – sobrecarregado – apontam para o que se pode chamar de “Zona Asiática de Exclusão do Dólar”, a qual, para muitas mentes espertas no mundo em desenvolvimento, pode pavimentar a estrada para uma moeda lastreada em energia, a ser usada pelos Brics e pelo Grupo dos 77 (G-77) para resistir ao cada vez mais desesperado – e sem rumo – ocidente atlanticista.
De volta ao congresso dos poodles europeus, basta examinar a declaração conjunta distribuída por aqueles fenômenos de mediocridade – o primeiro-ministro britânico David Cameron, a chanceler alemã Angela Merkel e o neonapoleônico “libertador da Líbia”, o francês Nicolas Sarkozy. O trio disse que “nada temos contra o povo iraniano.”
Os iraquianos ouviram exatamente a mesma frase de outro grupo de mediocridades em 2002 e 2003. Em seguida, o Iraque foi invadido, ocupado e destruído.


sábado, 7 de janeiro de 2012

As duas faces da cidade



A privatização, essa manjada pirataria da elite, ou a privataria, como a ela se refere o mestre Elio Gáspari, assume proporções descomunais na cidade de Salvador.

Uma praça pública, mil vezes abandonada e reformada com o dinheiro do povo, poucos dias após a sua mais recente reinauguração, que quer dizer, poucos dias após ser entregue novinha em folha ao povão, foi violentamente privatizada, cercada, bloqueada, por uma obra privada dos patrões do carnaval. Várias vistosas e acintosas placas vermelhas com letras brancas informam que se trata da obra Camarote Salvador. Obviamente, trata-se de uma obra ilegal, clandestina, gozando da conhecida impunidade seletiva, porque não existe a placa obrigatória com os dados do Alvará de Construção, nem a necessária placa acusando a vistoria do Conselho Regional de Engenharia

Será que existe algum servidor público capaz de assinar um alvará dessa natureza, explicitamente fruto de um negócio entre amigos, feito pela cúpula da administração municipal com os donos do carnaval? Quem mais vai meter a mão nessa cumbuca?

Mas trata-se de Salvador e aqui sempre aparece mais gente metendo a mão.

Com a “obra” há mais de meio caminho andado, eis que surge repentinamente, imponente, uma placa oficial, uma vistosa “chapa branca” com as cores e a bandeira do Brasil, que, com os seus dizeres, expõe ao escárnio popular e atesta essa coisa ridícula que é também o governo federal. Diz a placa surreal exatamente o seguinte: Área de uso comum do povo-Praia. Permissão de uso autorizada pela Superintendência do Patrimônio da União, SPU/BA. Ministério do Orçamento, Orçamento e Gestão.  Quer dizer, uma placa que define um espaço como praia de uso comum do povo e ao mesmo tempo autoriza o seu uso comercial privado. Isso quer dizer que aqui, nessa cidade de Oxum, a capital da nossa baianidade nagô, se privatiza impunemente até praças e praias. 

Mas em nossa querida Soterópolis, não são apenas os patrões do carnaval da cidade que mandam em quem governa. Mandam ainda mais os privateiros concessionários do serviço público de transporte de passageiros. Péssimo e caríssimo serviço, até para animais sem dono; serviço que só cumpre horários rentáveis, ao seu bel prazer, deixando como indigentes na sarjeta operários noturnos à espera de transporte, até o dia amanhecer.

Esses piratas cobram tarifas abusivas, manipulando planilhas não auditadas de formação de preço, chantageando o governo, exigindo e recebendo subsídios absurdos, com base em receitas subdeclaradas, e custos superfaturados, aceitos passivamente pelas autoridades.

E todos sabemos que só haverá moralização nesses contratos de concessão, quando for exigido memória fiscal nas catracas dos ônibus, o que revelará o valor real, colossal, das receitas auferidas pelas empresas de ônibus, quando elas não são desviadas para contas bancárias de laranjas.

Mas também é público e notório que todo governante ou sindicalista que ousa desafiar o poder dessa máfia, em qualquer cidade do país, tem sua morte antecipada por tiros de pistoleiros e a sua memória aviltada pela impunidade absoluta de assassinos e mandantes.

E os escândalos perpetrados pelo plano diretor da cidade, para favorecer os patrões da construção civil, em detrimento da cidade e da qualidade de vida de sua população?

Essa é uma das faces da cidade. A outra face se revela nas palavras do meu lado esquecido de poeta:

A FACE MAIS VISÍVEL DE SALVADOR

Ando por calçadas arrebentadas,
como as vias bombardeadas da Palestina.
Piso em fezes, lama e urina,
como se estivesse dentro de uma latrina.

Nesse peso de andares e odores infernais,
ouço o ruído estridente de músicas horríveis e banais,
como se eu cumprisse a pena máxima  de todos o tribunais.

Seguindo pelas ruas da cidade,
vejo gente imunda, maltrapilha, maltratada,
como se caminhasse por uma África escravizada.

E caminho pelas ruas de Salvador,
sem poder apreciar a sua beleza,
como se a fome, a miséria e o abandono
embotassem meus olhos de tristeza.