Amigos,
Há 22 anos, que se completam na
3ª-feira, eu estava com um grupo de operários, estudantes e desempregados no
centro da cidade onde nasci, Flint, Michigan, para anunciar que o estúdio
Warner Bros, de Hollywood, afinal comprara os direitos para distribuir meu
primeiro filme, “Roger & Me”. Um jornalista perguntou: “Por quanto você
vendeu?”
“Três milhões de dólares” – respondi
com orgulho. Houve um grito de admiração, do pessoal dos sindicatos que me
cercava. Nunca acontecera, nunca, que alguém da classe trabalhadora de Flint
(ou de lugar algum) tivesse recebido tanto dinheiro, a menos que um dos nossos
roubasse um banco ou, por sorte, ganhasse e grande prêmio da loteria de
Michigan. Naquele dia ensolarado de novembro de 1989, foi como se eu tivesse
ganho o grande prêmio da loteria – e o pessoal com quem eu vivia e lutava em
Michigan ficou eufórico com o meu sucesso. Foi como se um de nós, afinal,
tivesse conseguido, tivesse chegado lá, como se a sorte afinal tivesse sorrido
para nós. O dia acabou em festa. Quando você é trabalhador, de família de
trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se dá bem, ou outros vibram
de orgulho – não só pelo que conseguiu ter sucesso, mas porque, de algum modo,
um de nós venceu, derrotou o sistema brutal contra todos, sem mercê, que
comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra nós.
Nós conhecíamos as regras, e as regras
diziam que nós, ratos da fábricas da cidade, nunca conseguimos fazer cinema, ou
aparecemos em entrevistas na televisão ou conseguimos nos fazer ouvir em
palanque nacional. Nossa parte deveria ser ficar de bico calado, cabeça baixa,
e voltar ao trabalho. E, como que por milagre, um de nós escapara dali, estava
sendo ouvido e visto por milhões de pessoas e estava ‘montado na grana’ – santa
mãe de deus, se preparem! Um palanque e muito dinheiro… agora, sim, é que os de
cima vão ver só!
Naquele momento, eu sobrevivia com o
salário-desemprego, $ 98 por semana. Saúde pública. Meu carro morrera em abril:
sete meses sem carro. Os amigos me convidavam para jantar e sempre pagavam a
conta antes que chegasse à mesa, para me poupar do vexame de não poder dividir
a conta.
E então, de repente, lá estava eu
montado em três milhões de dólares. O que eu faria do dinheiro? Muitos rapazes
de terno e gravata apareceram com muitas sugestões, e logo vi que, quem não
tivesse forte senso de responsabilidade social, seria facilmente arrastado pela
via do “eu-eu” e muito rapidamente esqueceria a via do “nós-nós”.
Em 1989, então, tomei decisões fáceis:
1. Primeiro de tudo, pagar todos os
meus impostos. Disse ao sujeito que fez a declaração de rendimentos, que não
declarasse nenhuma dedução além da hipoteca; e que pagasse todos os impostos
federais, estaduais e municipais. Com muita honra, paguei quase um milhão de
dólares pelo privilégio de ser norte-americano, cidadão desse grande país.
2. Os 2 milhões que sobraram, decidi
dividir pelo padrão que, uma vez, o cantor e ativista Harry Chapin ensinou-me,
sobre como ele próprio vivia: “Um para mim, um para o companheiro”. Então,
peguei metade do dinheiro – e criei uma fundação para distribuir o dinheiro.
3. O milhão que sobrou, foi usado
assim: paguei todas as minhas dívidas, algumas que eu devia aos meus melhores
amigos e vários parentes; comprei uma geladeira para os meus pais; criei fundos
para pagar a universidade das sobrinhas e sobrinhos; ajudei a reconstruir uma
igreja de negros destruída num incêndio, lá em Flint; distribuí mil perus no
Dia de Ação de Graças; comprei equipamento de filmagem e mandei para o Vietnã
(meu movimento pessoal, para reparar parte do mal que fizemos àquele país, que
nós destruímos); compro, todos os anos, 10 mil brinquedos, que dou a Toys for
Tots no Natal; e comprei para mim uma moto Honda, fabricada nos EUA, e um
apartamento hipotecado, em New York City.
4. O que sobrou, depositei numa conta
de poupança simples, que paga juros baixos. Tomei a decisão de jamais comprar
ações. Nunca entendi o cassino chamado Bolsa de Valores de New York, nem
acredito em investir num sistema com o qual não concordo.
5. Sempre entendi que o conceito do
dinheiro que gera dinheiro criara uma classe de gente gananciosa, preguiçosa,
que nada produz além de miséria e medo para os pobres. Eles inventaram meios de
comprar empresas menores, para imediatamente as fechar. Inventaram esquemas
para jogar com as poupanças e aposentadorias dos pobres, como se dinheiro dos
outros fosse dinheiro deles. Exigiram que as empresas sempre registrassem
lucros (o que as empresas só conseguiram porque demitiram milhares de
trabalhadores e acabaram com os serviços de saúde pública para os que ainda
tinham empregos). Decidi que, se ia afinal ‘ganhar a vida’, teria de ganhá-la
com meu trabalho, meu suor, minhas ideias, minha criatividade. Eu produziria
produtos tangíveis, algo que pudesse ser partilhado com todos ou de que todos
gostassem, como entretenimento, ou do qual pudessem aprender alguma coisa. Meu
trabalho, sim, criaria empregos, bons empregos, com salários decentes e
todos os benefícios de assistência médica.
Continuei a fazer filmes, a produzir
séries de televisão e a escrever livros. Nunca iniciei um projeto pensando
“quanto de dinheiro posso ganhar com isso?”. Nunca deixei que o dinheiro fosse
a força que me fizesse fazer qualquer coisa. Fiz, simplesmente, exatamente o
que queria fazer. Essa atitude ajuda a manter honesto o meu trabalho – e, acho,
ao mesmo tempo, resultou em milhões de pessoas que compram ingresso para
assistir aos meus filmes, assistem aos programas que produzo e compram meus
livros.
E isso, precisamente, enlouqueceu a
Direitona. Como é possível que alguém da esquerda tenha tanta audiência no
‘grande público’?! Não pode ser! Não era para acontecer (Noam Chomsky,
infelizmente, não aparece na lista dos 10 programas mais vistos da televisão; e
Howard Zinn, espantosamente, só chegou à lista dos mais vendidos do New York
Times, depois de morto). Assim opera a mídia-máquina. Está regulada para que
ninguém jamais ouça falar dos que, se pudessem, mudariam todo o sistema, para
coisa muito melhor. Só liberais babacas, que vivem de exigir cautela e
concessões e reformas lentas, aparecem com os nomes impressos nas páginas de
editoriais dos jornais ou nos programas da televisão aos domingos.
Eu, de algum modo, encontrei uma brecha
na muralha e meti-me por ali. Sinto-me abençoado, podendo viver como vivo – e
não ajo como se tudo fosse garantido para sempre. Acredito nas lições que
aprendi numa escola católica: que se você se dá bem, maior a sua
responsabilidade por quem não tenha a mesma sorte. “Os últimos serão os
primeiros e os primeiros serão os últimos.” Meio metido a comunista, eu sei,
mas a ideia é que a família humana existe para partilhar com justiça as
riquezas da terra, para que os filhos de Deus passem por essa vida, com menos
sofrimento.
Dei-me bem – para autor de
documentários, dei-me super bem. Isso, também, faz pirar os conservadores. “Você
está rico por causa do capitalismo!” – eles gritam. Hummm… Não. Não assistiram
as aulas de Economia I? O capitalismo é um sistema, um esquema ‘pirâmide’ que
explora a vasta maioria, para que uns poucos, no topo, enriqueçam cada vez
mais. Fiz meu dinheiro, à moda antiga, honestamente, fabricando produtos,
coisas. Nuns anos, ganho uma montanha de dinheiro, noutros anos, como o ano
passado, não tenho trabalho (nada de filme, nada de livro); então, ganho muito
menos. “Como é que você diz defender os pobres, se você é rico, exatamente o
contrário de ser pobre?!” É o mesmo argumento de quem diz que, “Você nunca fez
sexo com outro homem! Como pode ser a favor do casamento entre dois homens?!”
Penso como pensava aquele Congresso só
de homens que votou a favor do voto para as mulheres, ou como os muitos brancos
que foram às ruas, marchar com Martin Luther Ling, Jr. (E lá vêm a Direitona,
aos gritos, ao longo da história: “Hei! Você não é negro! Você nem foi
linchado! Por que está a favor dos negros?!”). Essa desconexão impede que os
Republicanos entendam por que alguém dá o próprio tempo ou o próprio dinheiro,
para ajudar quem tenha menos sorte. É coisa que o cérebro da Direitona não
consegue processar. “Kanye West ganha milhões! O que está fazendo lá, em Occupy
Wall Street?!”. Exatamente – lá está, exigindo que aumentem os impostos
cobrados dele mesmo. Isso, para a Direitona, é definição de loucura. Todo o
resto do mundo somos muito gratos que gente como ele se tenha levantado, ainda
que – e sobretudo porque – é gente que se levantou contra seus pessoais
interesses financeiros. É precisamente a atitude que a Bíblia que aqueles
conservadores tanto exaltam por aí exige de todos os ricos.
Naquele dia distante, em novembro de
1989, quando vendi meu primeiro filme, um grande amigo meu disse o seguinte:
“Eles cometeram erro muito grave, ao entregar tanto dinheiro a um sujeito como
você. Essa grana fará de você homem perigosíssimo. É prova do acerto do velho
dito popular: ‘Capitalista é o sujeito que vende a você a corda para enforcar
ele mesmo, se achar que, na venda, ele pode ganhar algum.”
Atenciosamente,
Michael Moore
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