quarta-feira, 14 de março de 2012

A linha dura do golpe militar



Refazer alguma coisa significa fazer novamente a mesma coisa, mas com nova orientação. Pois bem, a partir de hoje vou refazer a forma de escrever cartas impublicáveis, unindo o útil ao agradável.

Uma relação amorosa entre pais e filhos exclui completamente gritos, castigos e espancamentos. Uma relação amorosa entre pais e filhos se alimenta e cresce com muitas histórias e muita conversa.

Tenho com minhas filhas Maria e Júlia uma relação amorosa desde antes delas nascerem. Com medo de ficar com estrias, aproveitei esse medo da mãe delas para massagear o casulo de minhas duas borboletas, todos os dias encantados da gestação. Frequentei um proveitoso curso noturno de massagem na botica “Veado de Ouro”, em São Paulo, e me habilitei, com diploma e tudo mais, à indiscreta função de conjugal eliminador de estrias futuras.

Mas esse papo de massagem era só uma desculpa para conversar com minhas filhas frequentemente, diariamente, antecipando tudo de bom que elas iriam encontrar no mundo e, por isso, logo apresentei a elas os concertos de Bach para cravo, desde quando elas eram apenas uma semente de mim no ovo de sua mãe.

Acompanhei todo o espetáculo da passagem de Júlia do útero para a sala de parto. Recebi das mãos do médico essa linda criatura; olhei para ela, notei uma enorme semelhança de Júlia com sua avó e a entreguei para Jacinta dizendo, “Jace, você acaba de parir sua mãe”. Como foi um parto de cócoras, não houve choro, nem sofrimento durante essa travessia e Júlia dormia como um anjo, quando a levei para o quarto.

No quarto, liguei o som no concerto de Bach e nunca vou esquecer a expressão de felicidade brilhando no céu azul dos olhos dela, quando Júlia reconheceu a música e arregalou seus olhinhos.

Com essa história, começou a nossa relação amorosa, e muitas outras histórias bonitas foram se sucedendo. Com muita música, conversa, teatrinhos e brincadeiras, fomos levando a vida e, por causa dos teatrinhos e das conversas, não foi preciso colocar rede nas janelas da casa, nem cobrir as tomadas elétricas com vedantes de borracha.

Bem cedo, antes de completar 1 ano de idade, as borboletinhas ganharam asas e assumiram o próprio vôo. Logo, em seus primeiros passos, fiz o teatrinho inicial. Mostrei a elas dramaticamente a tomada, coloquei um fio em cada buraco e os uni na outra extremidade. Foi um curto circuito avassalador, com relâmpagos e trovões. Dei pulos e cambalhotas antes de me espichar todo no chão.  Depois levantei, apontei a tomada para as bocas abertas de espanto e disse “não”.  Com as janelas, fiz um teatro parecido e mostrei que o peso da cabeça antecipa a queda do corpo e me joguei no jardim de uma janela baixa, fazendo um enorme estardalhaço.   Foi o bastante para não existir um só registro de choque elétrico, ou de quedas de janela, na brilhante carreira delas.

E lindas conversas e histórias foram se sucedendo, dentro e fora do lar. E eu lhes contava todas as histórias. A tal ponto que, já grandinhas, elas me apelidaram de Forrest Pai e me intimaram a escrever, para um livro, todas as histórias que vivi e lhes contei.

E aqui estou, por esse motivo, lembrando e anotando algumas delas.

A propósito de uma matéria que li num jornal, relatando que a “linha dura” do exército brasileiro pede a Dilma que censure ministros que falarem mal da ditadura militar, lembrei de uma  historinha que se passou durante essa fase obscura de nossa história.

Eu tinha e ainda tenho grande simpatia e admiração pelos meus colegas do Colégio 2 de Julho, onde fui estudar, depois de anos convivendo com os filhinhos de papai do Colégio Marista. A nossa amizade era enorme e a simpatia recíproca.  Todos eles eram militantes estudantis e com eles me engajei na luta democrática a favor da legalidade e do respeito à vontade popular expressa no voto. Eles me chamavam carinhosamente de Burguês Avançado, até o dia em que passei a ser Burguês Recuado, porque não segui com meus amigos para a guerrilha do Araguaia.

Alguns amigos combatentes morreram por lá. Outros no Vale do Ribeira, em São Paulo. Eudaldo morreu em Pernambuco. A casa de taipa, onde ele estava, foi partida ao meio por milhares de tiros de fuzil e metralhadora.

Cercado no Vale do Ribeira por mais de 300 mil soldados das forças armadas, Lamarca e mais 15 guerrilheiros precisavam de fardas do exercito para tentar furar o cerco, se passando por soldados. Lamarca sabia das manhas e emboscou na mata um pelotão do exército com mais de 30 homens. Amarrados e amordaçados, os soldados foram despidos e suas fardas vestidas pelos guerrilheiros da legalidade. Menos a farda do capitão, que seria usada por Lamarca, porque a farda do capitão estava toda cagada.

Lamarca e seus companheiros foram mais uma vez bem sucedidos. Enquanto os guerrilheiros seguiam o seu caminho de heróis, lá na penumbra da mata fria e silenciosa, o sargento perguntou ao capitão: “O que foi isso, capitão? O senhor tem medo de morrer?

Não sargento, eu não tenho medo de morrer. Eu não me caguei de medo. Eu me cago é de vergonha. Eu tenho é vergonha de viver! Os guerrilheiros tem uma causa nobre por que lutar, uma razão digna de se morrer por ela e pela pátria. E nós? Por quem nós lutamos? Para quem nós matamos e morremos? Quem nos manda lutar está escondido nos gabinetes ou nos subterrâneos da covardia, torturando civis desarmados.

O resto da história é conhecida. O sacrifício dos guerrilheiros não foi em vão. Na volta da democracia, a Lei da Anistia foi feita pelo povo para honrar o sacrifício de todos os combatentes. Tanto os guerrilheiros como os soldados, nos campos de batalha.  Os covardes torturadores estão fora dessa anistia, que foi dada pela vontade do povo, apenas aos valentes, aos heróis combatentes e aos soldados, que tiveram coragem de enfrentar os brasileiros mais valentes de todos.

Dilma deve sim, estimular seus ministros a dizer o que sofreram durante a ditadura militar e falar ao povo tudo que sabem. Dilma deve sim, abrir para o público os arquivos secretos da ditadura e mandar para cadeia todos esses covardes, todos esses monstros da linha dura, que ousarem levantar a voz contra as instituições democráticas, contra o poder do povo, entregue pelo voto à presidente da República, a suprema mandatária das forças armadas, a quem todos os militares, da ativa ou não, devem obediência.

Esses pobres coitados da linha dura nada me inspiram a não ser vergonha. Uma vergonha cagada, parecida com a vergonha do capitão, que o Capitão Lamarca amarrou e deixou no mato. Mas quero dividir com vocês um poema que escrevi para os meus amigos guerrilheiros que morreram nos calabouços da tortura e nos campos de batalha:

                                   RIO ARAGUAIA

                              Cada pessoa deixa
                              por onde passa
                              as marcas da própria vida
                              nos restos do que viveu.

                              dentro da selva
                              deixei um rio
                              no espelho do rio
                              deixei o céu

                              migalhas de pão
                              sobre uma pedra
                              e a pedra molhada de mel

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