Passados alguns elásticos
dias pré e pós-carnavalescos do fim da
insurreição da polícia militar da Bahia, dias propícios à orgia e ao
esquecimento, sem que a notícia de punição alguma tenha sido anunciada e aplicada
aos marginais fardados, que subverteram a ordem pública, sequestraram ônibus,
coagiram cidadãos com arma em punho e interditaram avenidas, atirando para o céu,
num atentado contra o senhor direito de ir e vir das pessoas, e mais alguns outros
crimes de morte, saque e assalto divulgados pela imprensa, podemos ao menos
tirar uma importante comprovação desse triste e grave episódio, que é a nua e
crua constatação de que ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Somos todos
iguais.
Desde criança
tenho uma acentuada e indisfarçável predileção pelos desvalidos. Para a preocupação de meus pais, ofereci,
entre outros motivos, o fato de ter entre os mendigos e os favelados os meus
melhores e mais queridos amigos, com quem eu partilhava, sem dolo e sem culpa, o
excesso dos bens materiais e da pequena renda que me cabiam.
Mais velho,
já cursando a faculdade, essa predileção se acentuou, quando a legião de
miseráveis e desvalidos recebeu um reforço numérico incalculável, patrocinado
pelos donos da ditadura militar, ao ponto de um famoso astro internacional da
música ficar tão impressionado com a minha intimidade com os mendigos e
moradores de rua - nós nos abraçávamos e nos chamávamos pelo nome - que o seu
disco, nascido dos 20 dias de nossa frutífera convivência, chama-se O banquete dos mendigos, cuja música
mais conhecida desse disco é Sympathy for
the devil.
Com a prática budista não
religiosa que me leva pelo caminho no universo
material, aprendi a fechar os olhos quando abraço alguém que eu amo. Com isso, posso
sentir melhor o abraço e tão profundamente, ao ponto de me ver transformar no
abraço que eu dou.
Um dia desses, abraçava
Cristina, uma querida, linda e elegante senhora
moradora de rua, que nesse dia estava um pouco mais suja e com o seu perfume da
sarjeta mais acentuado, quando tive um em impulso de abrir os olhos e ver o
quanto é ridícula a expressão do horror e nojo das pessoas normais em nossa
volta, uma vez que depois daquele lindo abraço que nós fomos, eu voltei a ser
eu e ela voltou a ser ela.
Agora vejo como é também
ridícula a expressão da nossa repulsa diante do
episódio dos crimes e da impunidade de um bando de marginais fardados, porque
nós todos vimos nesse episódio e com bastante clareza que:
1. alguns
policiais a quem empregamos, remuneramos mal e os armamos com a missão de zelar
pela nossa segurança, não são nem um pouco melhores nem piores do que um bando
de traficantes armados, que aterrorizam as favelas do país;
2. os
governantes e os parlamentares, que elegemos e os remuneramos regiamente para
nos garantir a ordem e o progresso, palavras inutilmente escritas na nossa
bandeira, mas que se atolam na lama fétida da corrupção e da impunidade, não
são nem um pouco melhores nem piores do que um bando de porcos chafurdando a
lama asquerosa do seu alimento, para encher o próprio bucho;
3. os
possuidores do Brasil, esses eternos capachos do colonialismo, deplorável gente
predadora do meio ambiente e dos recursos naturais, que nada inventa e nada
cria, além da sombria arquitetura e obscura construção do nosso triste quadro
social, não são melhores nem piores do que a legião dos explorados possuídos,
que dispondo apenas de recursos para sobreviver, criam uma das mais belas e
vigorosas arte popular do mundo;
4. e
que nós mesmos, com a nossa ancestral indiferença à vida, não somos nem um
pouco melhores nem piores do que um bando de carneirinhos conformados,
caminhando passivamente para o abatedouro.
Assim,
em uma merecida homenagem à coerência, vamos combinar que onde se lê ordem e progresso sobre o lábaro
estrelado ostentado pela nossa bandeira, veja-se escrito impunidade, igualdade e fraternidade, porque ninguém mais duvida
que todos nós somos irmãos, iguais como inimigos e unidos como os animais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário