sábado, 7 de janeiro de 2012

As duas faces da cidade



A privatização, essa manjada pirataria da elite, ou a privataria, como a ela se refere o mestre Elio Gáspari, assume proporções descomunais na cidade de Salvador.

Uma praça pública, mil vezes abandonada e reformada com o dinheiro do povo, poucos dias após a sua mais recente reinauguração, que quer dizer, poucos dias após ser entregue novinha em folha ao povão, foi violentamente privatizada, cercada, bloqueada, por uma obra privada dos patrões do carnaval. Várias vistosas e acintosas placas vermelhas com letras brancas informam que se trata da obra Camarote Salvador. Obviamente, trata-se de uma obra ilegal, clandestina, gozando da conhecida impunidade seletiva, porque não existe a placa obrigatória com os dados do Alvará de Construção, nem a necessária placa acusando a vistoria do Conselho Regional de Engenharia

Será que existe algum servidor público capaz de assinar um alvará dessa natureza, explicitamente fruto de um negócio entre amigos, feito pela cúpula da administração municipal com os donos do carnaval? Quem mais vai meter a mão nessa cumbuca?

Mas trata-se de Salvador e aqui sempre aparece mais gente metendo a mão.

Com a “obra” há mais de meio caminho andado, eis que surge repentinamente, imponente, uma placa oficial, uma vistosa “chapa branca” com as cores e a bandeira do Brasil, que, com os seus dizeres, expõe ao escárnio popular e atesta essa coisa ridícula que é também o governo federal. Diz a placa surreal exatamente o seguinte: Área de uso comum do povo-Praia. Permissão de uso autorizada pela Superintendência do Patrimônio da União, SPU/BA. Ministério do Orçamento, Orçamento e Gestão.  Quer dizer, uma placa que define um espaço como praia de uso comum do povo e ao mesmo tempo autoriza o seu uso comercial privado. Isso quer dizer que aqui, nessa cidade de Oxum, a capital da nossa baianidade nagô, se privatiza impunemente até praças e praias. 

Mas em nossa querida Soterópolis, não são apenas os patrões do carnaval da cidade que mandam em quem governa. Mandam ainda mais os privateiros concessionários do serviço público de transporte de passageiros. Péssimo e caríssimo serviço, até para animais sem dono; serviço que só cumpre horários rentáveis, ao seu bel prazer, deixando como indigentes na sarjeta operários noturnos à espera de transporte, até o dia amanhecer.

Esses piratas cobram tarifas abusivas, manipulando planilhas não auditadas de formação de preço, chantageando o governo, exigindo e recebendo subsídios absurdos, com base em receitas subdeclaradas, e custos superfaturados, aceitos passivamente pelas autoridades.

E todos sabemos que só haverá moralização nesses contratos de concessão, quando for exigido memória fiscal nas catracas dos ônibus, o que revelará o valor real, colossal, das receitas auferidas pelas empresas de ônibus, quando elas não são desviadas para contas bancárias de laranjas.

Mas também é público e notório que todo governante ou sindicalista que ousa desafiar o poder dessa máfia, em qualquer cidade do país, tem sua morte antecipada por tiros de pistoleiros e a sua memória aviltada pela impunidade absoluta de assassinos e mandantes.

E os escândalos perpetrados pelo plano diretor da cidade, para favorecer os patrões da construção civil, em detrimento da cidade e da qualidade de vida de sua população?

Essa é uma das faces da cidade. A outra face se revela nas palavras do meu lado esquecido de poeta:

A FACE MAIS VISÍVEL DE SALVADOR

Ando por calçadas arrebentadas,
como as vias bombardeadas da Palestina.
Piso em fezes, lama e urina,
como se estivesse dentro de uma latrina.

Nesse peso de andares e odores infernais,
ouço o ruído estridente de músicas horríveis e banais,
como se eu cumprisse a pena máxima  de todos o tribunais.

Seguindo pelas ruas da cidade,
vejo gente imunda, maltrapilha, maltratada,
como se caminhasse por uma África escravizada.

E caminho pelas ruas de Salvador,
sem poder apreciar a sua beleza,
como se a fome, a miséria e o abandono
embotassem meus olhos de tristeza. 

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