terça-feira, 23 de abril de 2013

Rara sinfonia



O melhor lugar do mundo é embaixo de nossos pés. A felicidade não escolhe pessoa, lugar, nem hora.

Por exemplo, a alegria que sinto fazendo o almoço semi vegetariano, com peixe grelhado, arroz preto, molhos de tofu com  legumes crus, shimeji em alho, óleo e ervas e as saladas cruas da dieta de Julia, na tradicional cozinha da casa de minha mãe, quando estou em Salvador, é a mesma alegria de quando preparo para mim, na atual cruzinha da Casa da Aranha, onde moro, as saladas cruas e vivas, com brotos de lentilha, de feijão azuki, de feijão moyashi e de feijão verde, com molhos vivos, temperados com ervas cruas de quintais e tofu, feito com soja natural pelo meu amigo Tetsuo Ishioka.

A tradicional cozinha que uso em Salvador é ampla e mal iluminada. Uma de suas quatro paredes esta coberta por esses enormes armários pré fabricados que as madames emergentes adoram. Em parte da outra parede fica um fogão à gás, enorme e automático, sob uma imensa coifa envolta no esquecimento, na outra  parte, uma bancada coberta de granito polido, com armários em baixo da bancada, prateleiras em cima e, quase no teto,  uma janelinha inacessível, para entrar um pouco de luz do sol, escondido pelas sombras do Shopping Barra, e também entrar o vento que vem do poente e que sopra muito raramente, em nossa região metropolitana do recôncavo baiano. A grande cozinha ainda tem quatro portas. Uma é a entrada de serviço, a segunda uma passagem para a sala de jantar, a terceira é aquela tal de um quartinho de despejo, sem janelas, que inclui uma pequena cama para o repousa das curicas e, finalmente, a quarta é a porta de um minúsculo banheiro chamado de banheiro das empregadas, com uma pequena pia, um vaso sem tampa e um box fechado com cortina de plástico, muito degradada e corrompida.

A cruzinha da Casa da Aranha é o avesso de uma cozinha tradicional. Primeiro, porque ela é livre e independente, separada e afastada dos chalés.  Segundo porque ela não tem portas, nem janelas. A cruzinha da Casa da Aranha já nasceu na forma de um quiosque circular, todo aberto para a vida, para o mar em frente e em volta, para a mata ao sol poente e para o céu em toda parte. O fogão, para fazer concessão ao gosto alimentar de visitantes, que preferem queimar os nutrientes e matá-los antes de comê-los, é de lenha. O armário, a mesa e os bancos foram feitos recentemente por um artesão da ilha chamado Dedé, com pedaços de madeira antiga que sobraram da demolição da Mata Atlântica, que já foi exuberante na ilha de Itaparica. E como aqui na Casa da Aranha todos são iguais como são, não existe quarto de empregadas. Mas a cruzinha tem uma grande geladeira “frost free”, legado de Simone, uma enorme pia de aço com 2 metros de tamanho, que foi da casa de Tina, e um pequeno fogão Consul de 4 bocas, vindo de São Paulo, onde eu cozinhava na casa de Júlia, lá no lindo Brooklin paulista, para os dias em que a chuva tão querida vem molhar a lenha do outro fogão.

Na sua viagem para o apogeu do inverno, o sol desce a cada dia um degrau para o norte e sua luz bem tropical, que ilumina as cores, as árvores e as flores de Itaparica, despenca intensa e forte lá do alto do telhado da cruzinha, feito de material reciclado, para brincar de me ofuscar no aço da pia. Cobri a pia com uma fino tapete verde de borracha, que ficou parecendo um gramado em cima da pia e acabei com essa brincadeira do sol, inoportuna para os olhos de qualquer pessoa.

Numa dessas luminosas manhãs de depois da chuva, ocupado em tirar ferrugem da boca de um pote de vidro, esfregando areia da praia com uma esponja marinha, escutei embaixo de mim o trinado alegre e suave de um passarinho. Olhei para baixo da pia e é claro que não havia passarinho algum. Admiti que se tratava de uma passarinho ventríloquo, invisível, que cantava para mim em algum lugar não identificado no frondoso pé de sucupira, bem em frente à pia. Mas o canto alegre do pássaro invisível, com sua alegria e beleza, atraiu o canto de dezenas de outros pássaros, com o mesmo canto igual ao dele, que vieram pousar nas galhas molhadas da sucupira. A alegria do privilégio de poder escutar música tão linda, vinda de tantos pássaros, visíveis e um invisível em baixo da pia, me embalava e entorpecia, quando descobri que o belo trinado do invisível pássaro ventríloquo vinha do atrito do pote molhado com a borracha da pia.

A felicidade é simples

A felicidade é muito simples,
como a teia da aranha que a aranha tece,
quando chove meu caminho é lama
e é só poeira quando a seca aparece.

Mas a felicidade é muito fácil,
como é a teia para a aranha que tece,
é vibrar com as plantas depois da chuva
e sorrir com as flores quando amanhece.

Mas o bicho homem explode bombas,
contamina o ar, envenena as águas,
destrói a terra e envelhece.
Enquanto isso, a aranha a sua teia tece.







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